sexta-feira, 12 de outubro de 2012
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(1972) Marina Colasanti
Assinar:
Postar comentários
(Atom)
Pesquisar sobre
Quem sou eu
- Nih Ferreirat
- Aos 34 anos, sagitariana com ascendente em capricórnio (discordo, mas fazer o quê?!), do Rio de Janeiro (com louca vontade de morar num lugar tranquilo), estudante de psicologia (mas cheia de problemas de cabeça. rsrrsrsrs), mãe e pai da pequena Bia, de 5 anos. E esse blog fala da nossa trajetória, dos meus sentimentos, minhas muitas lamentações, etc.
Seguidores
Tecnologia do Blogger.
Tags
1 Ano de Blog
1º Aniversário
2016
2020
4 anos
Aborto
Amor Desamor
Ano Novo
Avós
Babá
Beleza
Cartas
Cartas para Bia
Chá de Fraldas
Chá de Fraldas e Presentes
Convite Chá
Creche
De volta
DEPOIMENTOS
Depressão
Desenvolvimento
Desfralde
Despesas
Diário
Dicas para Mamães
Dificuldades
Diversão
Educação
Emagrecer
EMPREGO
ENCONTRO DE BLOGUEIRAS
EX
Facebook
Faculdade
Família GAY
Funchicórea
Gravidez
Gravidez na adolescência
Independência
Introdução
Juízo
Layout Novo
Leitores.
Listas
LIVROS LIDOS
Mãe solteira
Maternidade
Menina ou Menino?
Mês/versário
Metas 2016
Mudança
Músicas
NAM x Aptamil
Nascimento
Natal
Novo Relacionamento
ONG
Pai Ausente
Parto
Pensão Alimentícia
Preconceito
Reflexão
Relacionamentos
Renúncia da Maternidade
Retrospectiva
Selinhos
Semanário
Separação
Tag
Terapia
Textos
Tristeza
Oi Nívia, espero que você escolha outro texto, depois deste, que lhe mostre a borboleta pousada na flor, as folhas das árvores dançando com vento, o sorriso da sua filha, as coisas boas que acontecem, mesmo sendo pequeninas ......... enfim, olhar para o lado menos estressante da vida. É para contrabalançar sabe? Aí as coisas vão mudando, devagar, mas vão!
ResponderExcluirBeijos querida.
Tem hora que é MUITO difícil, sabe???
ExcluirMas obrigada, Jô...
Muito liindo
ResponderExcluirMuito lindo.
ResponderExcluirOi flor, tudo bem? passei para conhecer o seu blog gostei muito e já estou te seguindo, também sou Blogueira Unida, e te convido a conhecer meu cantinho e se gostar me siga também... www.bybeiju.blogspot.com.br e bjim e até lá!
ResponderExcluir